quinta-feira, 23 de outubro de 2014

A segunda

É a minha segunda irmã que vai me dar sobrinhos, neste ano. É a segunda menininha dela que vem por aí. No meio de tantas fotos, selecionei duas.



Porque a vida, aos pares, é tão boa!...


Obs: fora a transformação em preto e branco, as fotos não sofreram nenhuma alteração ou produção. Sim, minha irmã está lindíssima assim - naturalmente! Muito sortudo esse meu cunhado!...

quarta-feira, 22 de outubro de 2014

Eu, rocha

Há alguns anos, algo trágico e incontrolável aconteceu na minha vida. Daquelas coisas que te tiram o chão, a fome, a cor, e você não tem nenhuma outra reação pra ter que não seja aguentar. Com choro ou sem, com trauma ou sem, com questionamentos ou sem, você tem que aguentar. Simplesmente porque não dá pra voltar e evitar que o impacto aconteça. Simplesmente porque você não tem outra opção, se quiser continuar vivendo.

Desde então, eu passei a ser vista por muitas pessoas de maneira completamente inesperada para mim: como uma rocha. Como alguém que não se abala, que tem uma fé invencível, que arruma bom humor e positivismo do tudo e do nada, que não se destrói. E cada vez que alguém me falava que me via como uma "fortaleza", eu questionava as suas idas ao oftalmologista. Porque eu não era rocha, eu não era forte, eu não me mantinha indestrutível: eu só sobrevivia, da maneira mais digna e graciosa e leve que eu conseguisse. Por mim e pelos meus.

Com o tempo, fui gostando de ser aparentemente forte. Os outros pararam de se preocupar tanto comigo ou de evitar certos assuntos ao meu redor. A vida voltava, lentamente, ao normal, e eu me sabia sobrevivente. Mais do que regressar aos círculos de conversas (outras que a viuvez precoce) cotidianos, as pessoas me procuravam para contar das suas dores, das suas pequenas ou grandes tragédias pessoais, dos seus impasses. E, ah!, como me fascinam as relações humanas! Eu tive a honra de participar de momentos únicos, de ouvir confissões de amores impossíveis, de ser a guardadora de segredos de uma vida inteira, de segurar na mão de gente que eu amo e ficar lá, TJ, esperando o vendaval passar. Tudo porque eu era considerada "forte".

Porém, dias e meses e anos se passaram, a vida mudou substancialmente, e eu nem pensava mais em mim dessa forma. Acreditava que ninguém mais me via assim, também. Só que fui, novamente, nomeada de "rocha". E descobri que ser rocha não é só ser resistente, duradoura, resiliente; mas ser firme, quase fria, ser forte, quase impenetrável, ser determinada, quase inatingível.

Mas eu não quero ser assim.
Quero ser forte quando precisar e for pra defender quem sofre; mas quero me derreter com um filme com final feliz.
Quero ser firme quando tiver que instruir e orientar; mas saber a hora de sentar no chão e brincar, de deixar comer pipoca no sofá, de fazer guerra de travesseiros.
Quero ser determinada quando for pra fazer alguém mais feliz; mas saber parar quando eu não tiver certeza e quando eu tiver que ouvir.
Quero ser resistente ao que for ruim; mas não quero resistir a um beijo, uma risada de criança, um abraço fora de hora.
Quero ser duradoura e não me abater por pouca coisa; mas quero ter a ciência que quase tudo na vida é "pouca coisa".
Quero ser resiliente. E continuar sorrindo. Continuar amando. Continuar acreditando que amanhã será ainda melhor!

terça-feira, 21 de outubro de 2014

Projeto 10 em 10 - outubro / 2014 - makes me happy

Sem querer, acabei colocando tema nesse "Projeto 10 em 10", como fazia em anos passados.
Mas foi sem querer... quando eu percebi, todas as fotos poderiam ter essa legenda. Então, virou o tema.


Café da manhã feito pelo filho - makes me happy!


Cheiro de novo - makes my happy!


Cartas, cartinhas, cartões que vão e vem pelos correios - make me happy!


Banho no meio da manhã (ah! Férias...) - makes me happy!


Palavras em muros, em livros, em filmes - make me happy!


Passeios inusitados e fotográficos - make me happy!


Mimos ou horas em boa companhia - make me happy!


Tesouros escondidos por aí - make me happy!


Elogios sinceros - make me happy!


Amor - makes me so very happy!

quinta-feira, 16 de outubro de 2014

Palavras como afrodisíaco

Tem gente que se enamora por olhos claros ou escuros. Conheço mulheres que se apaixonam por sorrisos. Sei de homens que se perdem por um par de saltos altos. Comidas, bebidas, imagens, músicas, cheiros, cada um elege o que mexe com a alma. Ou é eleito - porque essas coisas, às vezes, não se escolhe... elas, simplesmente, te reviram os sentidos. Você está lá, todo tranquilo, vivendo sua vida normal e um determinado perfume te invade. E a palavra é essa: invade. Não pede licença, não avisa previamente, não pede desculpas depois: te invade, te leva a ter pensamentos imediatos, te sacode e vai embora.

Eu tenho um abalo sísmico por um motivo bem mais banal: palavra. Não é a voz, não é a entonação, não é a proximidade do intelocutor, é aquele conjunto de letras que me tira o ar. Pode ser uma palavra só ou uma frase extensa. Um conto, uma crônica, uma letra de música, um poema, um livro de 600 páginas. Palavras são a causa da minha falta de ar. Ou da minha respiração ofegante e apressada.

Acho que por isso mesmo sou tão determinada em aprender outras línguas, tantas quantas meu hardware aguentar. Porque "saudade" só existe em português... porque algumas rimas em francês são absurdamente lindas e não comportam tradução... porque eu adoro o som de "perhaps"... porque italiano é música para os meus ouvidos (acho até que seria capaz de achar uma briga, em italiano, quase uma sinfonia e talvez me desse vontade de dançar). Imagino que nunca vá ter vontade de aprender alemão, por exemplo, porque não me visualizo enamorada pelo sons. E eu me enamoro pelas palavras e através delas.

Você já sentiu que alguém te ganhou em uma simples frase? Já se sentiu empolgada com o convite de um "vamos?", no meio de uma manhã qualquer? Você já sentiu calafrios quando ouviu a letra de uma música? Já achou que aquele poema cabia como uma luva em você? Alguma vez perdeu o chão ao ler um bilhete, uma carta, um e-mail? Se você está com a mão levantada, agora, bem vindo ao meu time!

Quando as palavras ligam e desligam alguns botões dentro de você, quando elas são capazes de te ganhar pra sempre, quando elas parecem digitadas a ferro quente na sua memória, elas também são afrodisíacas para você. Melhor do que muita pimenta, chocolate, frutas exóticas, cheiros diversos, bebidas excitantes, filmes, danças, é uma frase inesperada, instigante, que te coloca um sorriso no rosto que dura horas.

Se você for mesmo dos meus, provavelmente, música clássica vai estar lá no final da sua lista de preferidas... pois não tem letra.

segunda-feira, 13 de outubro de 2014

Nos seus olhos

Já dizia a minha música preferida dos Beatles: "watching her eyes and hopping I´m always there...". Eu acho linda a ideia de que alguém queira olhar nos meus olhos, pra sempre, e se ver lá. Quem não quer? Qualquer pessoa apaixonada deseja se encontrar no olhar do outro, toda vez que para lá olhar. Significa que você está por perto, próximo, ao alcance de.

Só que eu acredito que mais importante do que me ver ali, eu quero me ver através daquele olhar. Mais do que estar próximo fisicamente, eu quero estar "dentro" e quero ver como aquela pessoa me vê. Porque se ela me vê como alguém divertido, apaixonante, encantador, sábio, é aquilo que eu sou. Pelo menos, quando estou perto dela.

Nesse caso, você se sente seguro, você vai em frente, você se joga. Você tenta aquela carreira pois... vai que você seja bom mesmo?! Você se arrisca na dança de salão, sem medo de ser ridículo. Você enfrenta medos. Você topa o desconhecido. Ah, quando o outro te vê bem e no melhor de si, você nada de braçada! Você se vê como ele te vê: invencível.

O problema é quando o outro só te vê no seu lado B. São reclamações e exigências de "como você está difícil", "como você é reclamona", "como você só fica triste", "como você não curte a vida", "como você é mandão". E ele ou ela te diz que você está desleixado e não se arruma mais; que está eternamente insatisfeito; que é mal educado; que é egoísta. "Você não vê????"

Sim, eu vejo. E vejo por lente de aumento. Porque o olho do outro é sempre uma lente de aumento. Tudo que nos importa tem o condão de tornar relevante e assunto de Estado, aquilo que poderia passar despercebido. Sim, eu vejo... e não gosto do que vejo. Não gosto de mim nessa versão sombria. Nem sei porque alguém gostaria!

E por mais que você perdoe a pessoa daqueles comentários, você não se perdoa. E se cobra por não ser, assim, perfeito aos olhos do outro, pra quem você deveria ser. Seja ele pai, mãe, conjuge, filho, amigo.

Eu me meço pelo seu olhar.
Então, seja benevolente, da próxima vez que encontrar comigo.
Ou me avise do que está errado. Porque eu quero ser a melhor versão daquilo que eu puder ser!

quarta-feira, 8 de outubro de 2014

O velhinho na locadora

Era o segundo dia de férias e eu não podia viajar. Marido trabalhando, crianças na aula: me restou viajar com livros e filmes. Então, retomei um hábito há muito largado e fui pra locadora, escolher alguns DVDs. Em plena manhã de terça-feira, o lugar estava deserto e eu tinha prateleiras e prateleiras só pra mim. "Eu ia levar 2 ou 3... talvez aumente pra 5 ou 6 e fique com todas as fitas até sexta..." Enquanto eu estava lá, indecisa entre ser cult, ser clássica, ser romanticamente divertida, ser aventureira, entra na loja um senhor de uns 80 anos.

"Eu gostaria de alugar este filme", e passou um nome para a atendente.
"Pois não. Este está aqui."

Quando eles passaram por mim, o cliente aumentou a sua lista "eu queria, também, levar O Carteiro e O Poeta..."
"O senhor sabe que eu nunca assisti esse filme?", comentou a atendente. "Tanta gente fala dele..."
"É realmente ótimo", eu sussurrei, para não atrapalhar a conversa que era só deles dois, mas ansiosa por dar minha opinião.
O senhor ouviu, virou pra mim e sorriu "é mesmo ótimo, não é?"
Sorri de volta.

"Aqui estão", a atendente disse, entregando os dois filmes solicitados ao cliente e voltando pro caixa. Ele, ao invés de ir embora, começou a percorrer uma lista de filmes, ali por perto de mim.

"De que tipo de filmes você gosta?"
"Eu?". Claro, eu era a única outra consumidora ali. "Gosto de quase tudo. Depende do meu humor no dia: às vezes, quero algo para me fazer pensar, outras vezes, algo para me inspirar, e de vez em quando, algo para não pensar e só me divertir por duas horas."
"Já assistiu esse?", e ele me mostrou 'Cartas para Julieta'.
"Já! Uma delícia de filme."
"E a Itália é linda!"
"Verdade. Falando em Itália, o senhor já assistiu 'Para Roma com Amor', do Woody Allen?"
"Não... é bom?"
"Se o senhor gosta de Woody Allen, tem também", falamos juntos, "o 'Meia Noite em Paris'!". E rimos, cúmplices. "Nós gostamos tanto desse filme, que eu comprei, para assistir com a minha esposa sempre que ela tem vontade."

Continuamos aquela conversa gostosa e tranquila, extremamente apropriada para uma manhã de terça, sobre filmes que retratavam a Itália, a França ou qualquer canto charmoso do mundo, para onde valesse a pena ser transportado por 120 minutos ou mais. "E esse filme? Minha esposa adora esse!", disse ele, e abriu um daqueles sorrisos de quem se lembra de algo muito bom na vida.

A conversa durou mais uns cinco minutos, mas, para mim, tinha acabado ali, naquela frase e naquele sorriso. Porque é isso que significa envelhecer juntos, na minha concepção. Não só saber o básico sobre uma pessoa: se ela é filha única ou se tem nove irmãos, em que curso ela se formou, se gosta de rock ou de sertanejo ou dos dois. Mas é conhecer os apelidos que ela tem na família, é saber qual a matéria preferida na faculdade, é colocar pra tocar a música preferida dela, seja no ritmo que for, dependendo do humor do dia dela. É comprar uma roupa de tal cor porque ela gosta, é dividir uma paixão e deixa-la falar sobre o que é apaixonante, é fazer a comida preferida respeitando algum eventual regime, é topar passar uma noite caminhando só pra poder conversar e conhecer melhor aquela pessoa, é escolher o filme da locadora pensando no que ela gostaria de assistir. É saber o que ela não gosta nela mesma... e gostar, mesmo assim. É ter tempo pra intimidades gritantes como choros e conversas e risos de nervoso. Porque beijos e sexo são ótimos, mas são o tipo de intimidade rasa (ainda que deliciosa), que quase todo mundo tem. Ser íntimo de alguém, honestamente?, vai muito além disso.

Nem sempre chegamos na vida do outro a tempo de fazer parte da história dele, desde quando gostaríamos. Mas, intimidade é conhecer essa história como se você tivesse vivido tudo aquilo. E o que você vive, você entende, você sente, você respeita. É se permitir prestar atenção nos detalhes que fizeram o outro ser como é, a ponto de você mesmo poder contar aquela passagem da vida. É, realmente, dividir. É, realmente, se misturar. Só assim você vai saber, numa manhã qualquer, que o filme que ele gostaria de assistir é este ou aquele. Ou se ele preferiria só caminhar.

terça-feira, 7 de outubro de 2014

Des

Eu já tinha cobrado a escovação dos dentes, já tinha entregue o último copo d´água, já tinha feito as orações. Mas ele não conseguia dormir. Eu passava pelo quarto e via os olhinhos ainda abertos. Resolvi perguntar: "filhote, tudo bem?"

"Mãe, como a gente faz pra desmagoar alguém?"

Me senti importante, claro! Afinal, mães são seres que sabem explicar até o que não existe, como "desmagoar", por exemplo. É um grupo de seres diferenciados que curam machucados com beijos, que afastam pesadelos com cafunés, que conhecem decor uma brincadeira para cada situação entediante e que explicam palavras inventadas, como se fossem usadas desde Camões. Mas, de qualquer maneira, eu tinha que saber em qual sentido ele estava usando aquele termo super usual da língua portuguesa.

"Me explica exatamente o que aconteceu, filhote, pra que eu possa te ajudar a desmagoar quem quer que seja". Ah! A invencibilidade materna!... E ele me explicou que o tio dele (meu irmão), só 8 anos mais velho do que ele, tinha deixado o jogo eletrônico em casa, para ele brincar; porém, quando ele ligou, o dispositivo estava travando e ele resolveu arrumar; agora, não encontrava mais jogo nenhum. O medo era de ter apagado todos os jogos do tio do aparelho. Pior: ele nem tinha certeza de que tinha apagado tudo ou que o tio tinha visto ou que não saberia "consertar" ou que estaria chateado. O importante era que ele ACHAVA que o tio ficaria magoado e ele queria tirar esse sentimento ruim do tio. Desmagoa-lo.

A infância e sua ignorância são bênçãos incríveis. Você não sabe que não pode voar, então voa. Você não vê que é impossível viver num mundo de doces, então desenha. Você não percebe que amigos imaginários não existem, então conversa animadamente com eles. E, nessa inocência toda, você pode criar sentimentos para melhorar o mundo e deixar todos que você ama felizes.

Nós, adultos, não usamos muito o prefixo "des", quando necessário. Nós não desdizemos aquele comentário ruim. Nós não despensamos aquela atitude errada. Nós não desmagoamos ninguém. No máximo, nós pedimos desculpas, tentando voltar atrás na nossa culpa (des-culpa) e não tentando voltar atrás na magoa que causamos. Às vezes, é triste esse mundo adulto.

"Filhote, pra desmagoar alguém, a gente tem que falar que sente muito. E demonstrar que gosta demais! Amanhã, de manhã, nós vamos ligar para o seu tio, conversar com ele, conferir se já viu e se já resolveu o problema dos joguinhos. E dizer, também, que adoramos o final de semana juntos, o quanto você gosta dele, que não vê a hora de ir dormir na casa da vovó, de novo. Que ele não é só seu tio, é um dos seus melhores amigos! Tenho certeza de que seu tio vai desmagoar se você mostrar pra ele quão importante ele é pra você."

Se deu certo? Nesse final de semana, já estavam os dois juntos, mais uma vez, reclamando quando eu falava que estava na hora de ir embora e implorando por mais tempo para jogar mais um jogo de cartas, assistir mais um filme, disputar mais uma partida de futebol virtual. Ai, ai... eletrônica demais essa geração. Mas com um coração que aceita desmagoar e ser desmagoado.

sexta-feira, 3 de outubro de 2014

Luz, câmera e outro tipo de ação (Martha Medeiros)

"Existem filmes de ação com tiroteios, velocidade, cenas multipicotadas, sustos, finais bombásticos, superproduções. De vez em quando, até gosto. Mas os filmes de ação que estão entre meus preferidos são aqueles que, aparentemente, não têm ação nenhuma.

Um bom exemplo é Antes do Por do Sol, que dá continuidade ao Antes do Amanhecer e que finalmente entrou em cartaz. O filme é um blablablá ininterrupto entre um casal que caminha por Paris e discute a vida e a relação. Filme cabeça ou filme chato, rotule você. mas não diga que não é um filme de ação.

Medo, suspense, aflição, expectativa: diálogos também provocam tudo isso. Como não se sentir especialmente tocado por uma jovem mulher que admite ter perdido a ilusão do amor e que passou a viver blindada, refratária a qualquer nova relação? Como não se sentir mexido quando um homem admite que casou porque todos casam, que passar 24 horas por dia infeliz e que a única coisa que lhe justifica a vida é o filho de quatro anos? O que pode ser mais mirabolante, impactante, desestabilizante, emocionante do que ver duas frágeis criaturas, um homem e uma mulher predestinados um ao outro, enfrentando a crueza da distância física e do tempo, e a irrealização de seus sonhos? Não se costuma catalogar essas pequenas crises existenciais como filmes de ação, mas elas me prendem na cadeira como nem uma dezena de Matrix conseguiria.

Luz, câmera, ação: e então filma-se o silêncio entre um homem e uma mulher que não se veem há nove anos, e então filma-se todas as dúvidas sobre se devem se tocar ou não, se beijar ou não. Então filma-se o papo inicial, cauteloso, até que chega a hora da explosão, dos desabafos, das acusações e do quase-choro. Então filma-se o que poderia ter sido - especulações - e o que será daqui por diante - especulações também.

E se o que faz o amor sobreviver for justamente a falta de convivência e rotina? Quem apostaria num amor apenas idealizado? E se a nossa intuição for mesmo a melhor conselheira e não merecer ser desprezada? E se nossas lembranças nos traírem? E se casamento nenhum for mais importante do que um único encontro?

O cinema pode colocar pessoas desafiando a gravidade, cortando o pescoço uns dos outros, fazendo o tempo andar pra trás, e eu não me emocionarei nem ficarei perplexa, mas me dê um pouco de realidade e isso me arrebata."

(Martha Medeiros - Coisas da Vida)

quinta-feira, 2 de outubro de 2014

Sarcástico

"Filhote, vamos pegar umas esfihas pra jantar rapidinho?"
"Mãe, mas pra que a pressa? Você não está de férias?"

Pensando bem, ele tinha razão. Então, sugeri comermos na lanchonete, mesmo, curtindo a noite de domingo.

"Mãe, quantos dias você tem de férias?"
"Uns 10 filho", porque eu só pensava nos úteis. Afinal, sábado e domingo são sempre férias!
"Nossa, que ótimo, heim?"
"Você acha mesmo? Para e pensa, você tem 60, às vezes, 70 dias de férias e eu só tenho 10... Ótimo é ter as suas férias!"
"Eu sei, mãe. Só estava sendo sarcástico..."

E eu não sabia que ele sabia essa palavra. Nem que sabia usar o vocabulário tão bem.

quarta-feira, 1 de outubro de 2014

Pares

Ela tinha perdido um dos brincos, dentro do carro, numa correria qualquer, do dia anterior. Percebeu que ele havia caído, na hora, mas ela tinha coisas mais importantes para resolver; então, tirou o outro e guardou na bolsa. Só que hoje era sábado e ela tinha tempo sobrando. Pareceu-lhe uma boa ideia não só procurar o brinco perdido, mas arrumar toda aquela bagunça do carro. Quem sabe a bagunça interna também não se organizasse, no processo.

"Eu não sei como eu fui deixar as coisas chegarem nesse ponto. Logo eu, tão organizada. Logo eu que sempre sei onde está tudo o que eu preciso encontrar e, de repente, essa bagunça." Coisas de criança se misturavam com burocracias cotidianas (contas, recibos, avisos), que se misturavam com a vida adulta dela que ela tinha escolhido: material do curso de italiano, certidões familiares e música.

Como ela não encontrava o brinco, começou a pensar sobre como seria se o par nunca mais se fizesse. Talvez ela tivesse que jogar fora o brinco que sobrou, afinal ele não era nada caro, nenhuma jóia, só uma bijuteria que ela já tinha há um certo tempo. Mas, sabe como as pessoas são... elas se apegam àquilo que têm por um tempo. Ela não se lembrava onde o tinha comprado, nem porque. Provavelmente, porque era um brinco do tipo que ela gostava e sempre usava: lhe caía bem aquele modelo.

Numa distração, ela se lembrou de uma amiga linda, cheia de personalidade e estilo... que usava brincos diferentes. Uma pequena argola de um lado, uma maior e com pingente, do outro. Uma única borboleta, na orelha direita; um fio cheio delas, na esquerda. Muitas miçangas reluzentes que faziam um barulhinho bom, do lado de cá, e uma bolinha única, do lado de lá. E ficava incrível mesmo estando, qual seria a palavra, desorganizada! Mesmo que não fosse o plano original, mesmo que não tivesse comprado os pares daquela forma, nada dizia que era proibido usar os brincos do seu jeito particular.

Então, ela começou a criar possibilidades para si mesma. Afinal, já estava acabando a limpeza e não encontrava o que tinha perdido. Ela nem mesmo sabia se queria encontrar, pois usar os brincos em pares, da forma como eram, lhe parecia, no mínimo, falta de criatividade. E não sobra muito do encanto da vida se você não tiver uma dose de ousadia e um tantinho de vontade de se arriscar, de fazer diferente, de experimentar, de romper com padrões e viver de um jeito mais seu.

Quando estava quase convencida de que perder aquele brinco era a melhor coisa que tinha lhe acontecido, em um certo tempo, quando já arrumava o último gibi no banco de trás e retirava o saco de lixo do carro, ela encontrou o que procurava. Foi inevitável sorrir pra ironia da coisa: quando ela já estava preparada para mudar de visual, de pensamento, de atitude, veio a vida e disse "você tem as duas opções. Não é 'destino', não é 'culpa alheia', ninguém te obrigou a mudar. Você muda, se quiser. A opção está aqui. Use seus brincos como quiser". Mas, ela jura que ouviu as palavras "sua vida" no lugar de "seus brincos".

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