quarta-feira, 8 de outubro de 2014

O velhinho na locadora

Era o segundo dia de férias e eu não podia viajar. Marido trabalhando, crianças na aula: me restou viajar com livros e filmes. Então, retomei um hábito há muito largado e fui pra locadora, escolher alguns DVDs. Em plena manhã de terça-feira, o lugar estava deserto e eu tinha prateleiras e prateleiras só pra mim. "Eu ia levar 2 ou 3... talvez aumente pra 5 ou 6 e fique com todas as fitas até sexta..." Enquanto eu estava lá, indecisa entre ser cult, ser clássica, ser romanticamente divertida, ser aventureira, entra na loja um senhor de uns 80 anos.

"Eu gostaria de alugar este filme", e passou um nome para a atendente.
"Pois não. Este está aqui."

Quando eles passaram por mim, o cliente aumentou a sua lista "eu queria, também, levar O Carteiro e O Poeta..."
"O senhor sabe que eu nunca assisti esse filme?", comentou a atendente. "Tanta gente fala dele..."
"É realmente ótimo", eu sussurrei, para não atrapalhar a conversa que era só deles dois, mas ansiosa por dar minha opinião.
O senhor ouviu, virou pra mim e sorriu "é mesmo ótimo, não é?"
Sorri de volta.

"Aqui estão", a atendente disse, entregando os dois filmes solicitados ao cliente e voltando pro caixa. Ele, ao invés de ir embora, começou a percorrer uma lista de filmes, ali por perto de mim.

"De que tipo de filmes você gosta?"
"Eu?". Claro, eu era a única outra consumidora ali. "Gosto de quase tudo. Depende do meu humor no dia: às vezes, quero algo para me fazer pensar, outras vezes, algo para me inspirar, e de vez em quando, algo para não pensar e só me divertir por duas horas."
"Já assistiu esse?", e ele me mostrou 'Cartas para Julieta'.
"Já! Uma delícia de filme."
"E a Itália é linda!"
"Verdade. Falando em Itália, o senhor já assistiu 'Para Roma com Amor', do Woody Allen?"
"Não... é bom?"
"Se o senhor gosta de Woody Allen, tem também", falamos juntos, "o 'Meia Noite em Paris'!". E rimos, cúmplices. "Nós gostamos tanto desse filme, que eu comprei, para assistir com a minha esposa sempre que ela tem vontade."

Continuamos aquela conversa gostosa e tranquila, extremamente apropriada para uma manhã de terça, sobre filmes que retratavam a Itália, a França ou qualquer canto charmoso do mundo, para onde valesse a pena ser transportado por 120 minutos ou mais. "E esse filme? Minha esposa adora esse!", disse ele, e abriu um daqueles sorrisos de quem se lembra de algo muito bom na vida.

A conversa durou mais uns cinco minutos, mas, para mim, tinha acabado ali, naquela frase e naquele sorriso. Porque é isso que significa envelhecer juntos, na minha concepção. Não só saber o básico sobre uma pessoa: se ela é filha única ou se tem nove irmãos, em que curso ela se formou, se gosta de rock ou de sertanejo ou dos dois. Mas é conhecer os apelidos que ela tem na família, é saber qual a matéria preferida na faculdade, é colocar pra tocar a música preferida dela, seja no ritmo que for, dependendo do humor do dia dela. É comprar uma roupa de tal cor porque ela gosta, é dividir uma paixão e deixa-la falar sobre o que é apaixonante, é fazer a comida preferida respeitando algum eventual regime, é topar passar uma noite caminhando só pra poder conversar e conhecer melhor aquela pessoa, é escolher o filme da locadora pensando no que ela gostaria de assistir. É saber o que ela não gosta nela mesma... e gostar, mesmo assim. É ter tempo pra intimidades gritantes como choros e conversas e risos de nervoso. Porque beijos e sexo são ótimos, mas são o tipo de intimidade rasa (ainda que deliciosa), que quase todo mundo tem. Ser íntimo de alguém, honestamente?, vai muito além disso.

Nem sempre chegamos na vida do outro a tempo de fazer parte da história dele, desde quando gostaríamos. Mas, intimidade é conhecer essa história como se você tivesse vivido tudo aquilo. E o que você vive, você entende, você sente, você respeita. É se permitir prestar atenção nos detalhes que fizeram o outro ser como é, a ponto de você mesmo poder contar aquela passagem da vida. É, realmente, dividir. É, realmente, se misturar. Só assim você vai saber, numa manhã qualquer, que o filme que ele gostaria de assistir é este ou aquele. Ou se ele preferiria só caminhar.

5 comentários:

  1. Maravilhoso Mirysss
    Amei e já assisti a maioria dos filmes que vocês citaram ai
    E que fofo ele dizendo que comprou o filme para "assistirem" sempre que ela quiser.

    Muito fofo o seu post, e como alguns detalhes passam despercebidos quando não observamos, quando não paramos para contemplar o quanto a vida é bela. Né ?
    Bjs
    Debby :)

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  2. Que bom que vc voltou a escrever, Myris, estou adorando seus textos!!! Beijossssssss

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  3. Linda história! Você certamente deixou a manhã daquele senhor mias feliz, ainda que tenha conversado com ele só um pouquinho! :)
    E lindo desfecho para o post. Realmente, penetrar tanto na vida do outro a ponto de ter a sensação de que participou de todos os momentos da vida dele, é indescritível! Isso sim é intimidade!

    P.S.: Ter escrito "talvez aumente pra 5 ou 6 e fique com todas as FITAS até sexta" denuncia a época em que você começou a ir a locadoras para alugar filmes, hein? Heheheheh! Nossos filhos perguntariam "o que é fita?" se ouvissem essa frase. ;)

    B-jim!

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  4. Mirys, hoje depois de muito tempo, consegui participar do 10 on 10!
    Passa lá para espiar. Beijo!

    http://ladodeforadocoracao.blogspot.com.br/2014/10/10-fotos-no-seu-dia.html

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  5. Poderia me ensinar a classificar posts como aqui nessa organizada bagunça? (pois então seu blog é uma bagunça organizada!). Estou pensando pela enésima vez em retornar as minhas escrivaninhas ou será ESCRIVANINHAS ou ESCRIVATURAS??? (KKK) bjoS!!! Deus te abençoe com muitas coisas boas principalmente com olhares virtuosos e verdadeiros... NÓS DAQUI DE CIMA DO MAPA te amamos!!!

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