quarta-feira, 1 de outubro de 2014

Pares

Ela tinha perdido um dos brincos, dentro do carro, numa correria qualquer, do dia anterior. Percebeu que ele havia caído, na hora, mas ela tinha coisas mais importantes para resolver; então, tirou o outro e guardou na bolsa. Só que hoje era sábado e ela tinha tempo sobrando. Pareceu-lhe uma boa ideia não só procurar o brinco perdido, mas arrumar toda aquela bagunça do carro. Quem sabe a bagunça interna também não se organizasse, no processo.

"Eu não sei como eu fui deixar as coisas chegarem nesse ponto. Logo eu, tão organizada. Logo eu que sempre sei onde está tudo o que eu preciso encontrar e, de repente, essa bagunça." Coisas de criança se misturavam com burocracias cotidianas (contas, recibos, avisos), que se misturavam com a vida adulta dela que ela tinha escolhido: material do curso de italiano, certidões familiares e música.

Como ela não encontrava o brinco, começou a pensar sobre como seria se o par nunca mais se fizesse. Talvez ela tivesse que jogar fora o brinco que sobrou, afinal ele não era nada caro, nenhuma jóia, só uma bijuteria que ela já tinha há um certo tempo. Mas, sabe como as pessoas são... elas se apegam àquilo que têm por um tempo. Ela não se lembrava onde o tinha comprado, nem porque. Provavelmente, porque era um brinco do tipo que ela gostava e sempre usava: lhe caía bem aquele modelo.

Numa distração, ela se lembrou de uma amiga linda, cheia de personalidade e estilo... que usava brincos diferentes. Uma pequena argola de um lado, uma maior e com pingente, do outro. Uma única borboleta, na orelha direita; um fio cheio delas, na esquerda. Muitas miçangas reluzentes que faziam um barulhinho bom, do lado de cá, e uma bolinha única, do lado de lá. E ficava incrível mesmo estando, qual seria a palavra, desorganizada! Mesmo que não fosse o plano original, mesmo que não tivesse comprado os pares daquela forma, nada dizia que era proibido usar os brincos do seu jeito particular.

Então, ela começou a criar possibilidades para si mesma. Afinal, já estava acabando a limpeza e não encontrava o que tinha perdido. Ela nem mesmo sabia se queria encontrar, pois usar os brincos em pares, da forma como eram, lhe parecia, no mínimo, falta de criatividade. E não sobra muito do encanto da vida se você não tiver uma dose de ousadia e um tantinho de vontade de se arriscar, de fazer diferente, de experimentar, de romper com padrões e viver de um jeito mais seu.

Quando estava quase convencida de que perder aquele brinco era a melhor coisa que tinha lhe acontecido, em um certo tempo, quando já arrumava o último gibi no banco de trás e retirava o saco de lixo do carro, ela encontrou o que procurava. Foi inevitável sorrir pra ironia da coisa: quando ela já estava preparada para mudar de visual, de pensamento, de atitude, veio a vida e disse "você tem as duas opções. Não é 'destino', não é 'culpa alheia', ninguém te obrigou a mudar. Você muda, se quiser. A opção está aqui. Use seus brincos como quiser". Mas, ela jura que ouviu as palavras "sua vida" no lugar de "seus brincos".

3 comentários:

  1. Uau! Definitivamente, você tem o dom da escrita! Adorei esse conto! :)

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  2. Sobre vários posts.....

    Alguns atrás vc falou das pessoas influenciarem umas às outras....
    Vc é fantástica escrevendo. Mesmo. Acho que nem precisa muito para um livro. "Contos cotidianos" por Mirys Segalla.

    Beijocas e vc me deixou com vontade de amora!!!!

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